segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Areia que escorre entre os dedos, ou: O Progressismo liberal destruiu Guerra nas Estrelas? Parte Final

''Os Antigos, os Celestiais, os Rakata, não pronunciavam julgamento  de seu trabalho. Moviam planetas, organizavam sistemas estelares, conjuravam aparatos do lado sombrio, como a Forja Estelar, quando julgavam adequado. Se milhões morriam no processo, sem problema. As vidas de boa parte dos seres não tem importância. Os Jedi não conseguiram entender isso. Ocupam-se tanto tentando salvar vidas e lutando para manter em equilíbrio os poderes da Força que perderam a noção de que a vida senciente foi feita para evoluir, não simplesmente regozijar numa estase tranquila.''

Darh Plagueis





A cena final revela Luke como um Mestre realizado, a ''lenda da galáxia'': o reencontro com o personagem se tornou despedida dolorosa para alguns fãs e gloriosa para outros



Quando tratamos das causas para as críticas conservadoras atuais em cima da nova trilogia de Guerra nas Estrelas há de se ter redobrado cuidado para não cair em psicologismos. Há um óbvio viés político e sociológico imbricado com esse repúdio, que se liga por um lado ao conteúdo progressista que eu concordei existir na franquia, e, por outro, ao pêndulo ideológico que existe na vida das sociedades em que ela é exibida.







Mas dando prosseguimento à linha de raciocínio, prefiro discutir a tendência conservadora de criticar essa trilogia específica da saga enquanto se engana ao pretender separar as demais da mentalidade liberal, como se Guerra nas Estrelas não estivesse desde seu início mergulhado nos mais típicos valores americanos. Ora, se deixarmos de lado os dois extremos, aquele em que o cinema é mera propaganda dos valores ocidentais e aquele em que não traz nenhum abraço a eles, a obra de George Lucas se insere em um conjunto de filmes que pode tanto ser criticado por seu liberalismo como apreciado apesar dessas limitações. Muitos direitistas e conservadores estão preferindo, no entanto, louvar as duas primeiras trilogias ao mesmo tempo que condenam os filmes recentes ao inferno por pecados que são cometidos desde 1977. Nesse sentido é inócuo fingir que não há influências geracionais por trás dessa postura, ainda que eu admita existirem aqueles que escolhem manter o duplo critério por razões mais propriamente de caráter político.









Cada geração tem a tendência de encarar seu tempo como um período especial, e, mais curioso ainda, a proteger os elementos cuja ligação afetiva alimenta a sensação tão desejável de fazer parte da última bolacha do pacote, depois da qual tudo é decadência e nulidade. No caso de Guerra nas Estrelas, esse sentimento se traduz pela ilusão de que o estado em que conhecemos a saga é o que revela sua versão definitiva, sua verdade mais profunda e suas características mais essenciais. O que veio antes foi preparação para o cume que tivemos a sorte de conhecer, e o que vem depois é mero desvio e comércio. Evidente que toda e qualquer obra possui traços que a distinguem e sem as quais ela se torna definitivamente outra coisa. “The Walking Dead” acabaria como tal se deixasse de ser ambientada em um apocalipse zumbi. A saga criada por George Lucas não poderia abandonar o conceito de 'Força'. Mas essas particularidades não estão fixas nem no interior da concretude artística que as veiculam nem num determinado momento temporal. Como mencionei mais de uma vez nessas postagens, a obra é relida, vai sendo redimensionada à medida que encontra seu público, criando certa autonomia diante das intenções de quem a assina. E se esse público que recebe e remodela continuamente o significado da obra se estende no tempo em mais de uma geração fica complicado estabelecer um limite objetivo para o desenvolvimento daquelas particularidades que permitem reconhecê-la.




Rey e Finn descobrem a velha sucata que é a nave mais rápida da galáxia: os fãs dos anos 1980 voltam para casa





Parte considerável dos fãs de Guerra nas Estrelas carrega a firme convicção de que conhece a estrutura definitiva da narrativa, a partir da qual pode jogar anátemas sobre qualquer tentativa de mudança. É espantoso ver garotos que nasceram quase vinte anos depois da primeira trilogia dizendo que a linhagem Skywalker não poderia ser abandonada, pois a saga se trata principalmente sobre Anakin, o ''escolhido'', quando sabemos que nos primeiros rascunhos Luke era filho de Obi Wan, e que sua filiação a Vader não havia sido decidida pelo próprio criador da saga antes do início da produção d’O Império contra-ataca. Outro dia, eu lia uma entrevista antiga de George Lucas, em que o cineasta explicava que Yoda não era exatamente um Jedi. Ele seria um mestre que guiava outros que pretendiam e podiam se tornar cavaleiros da Ordem. Como consequência dessa perspectiva, continuava Lucas, Yoda não lutava, e, disse ele literalmente, não conseguiria enfrentar, por exemplo, Darth Vader. Agora pensem na segunda trilogia, em que acompanhamos o mesmo Yoda como um dos membros mais importantes do Conselho Jedi, hábil o suficiente para se digladiar com inimigos e dar saltos acrobáticos brandindo seu sabre de luz em lutas magníficas contra o Conde Dooku e contra o Imperador em pessoa [Darth Sidious para os mais novos]. Qual a ''verdade'' da saga, aquela na cabeça de George Lucas nessa entrevista ou a que ele próprio levou ao cinema?






Eu cresci nos anos 1980 com os três primeiros filmes, e os fãs da minha idade tem uma relação ambígua com os lançamentos da Disney. Nos anos 2000 fomos engolfados por uma certa estranheza quanto aos rumos estabelecidos pela Lucasfilm. ''Ameaça Fantasma'' era demasiado infantil para nós, que já estávamos cursando a faculdade ou iniciando a vida profissional, quando não criando já o primeiro filho e sustentando a primeira casa. A ambiência nos deslocava, não reconhecíamos de imediato o universo com o qual havíamos crescido -- apesar do filme ter alguns planos e cenas belíssimos, como o dos amplos salões de Naboo, mergulhados num misto de grandiosidade e orientalismo. Esse deslocamento era acentuado pelo novo trio de protagonistas: Luke, Leia e Solo foram descartados, e em seu lugar víamos Anakin, Padmé e um jovem Obi Wan. Ainda mais estarrecedor, porém, era a baixa qualidade dos filmes. De fato, o único que merece ser chamado de bom é ''A Vingança do Sith''. Diante disso, fiquei espantado com o sucesso da empreitada: George Lucas foi extremamente bem sucedido ao levar Guerra nas Estrelas para adolescentes criados entre PCs, na Internet, desejosa por realidade virtual e mergulhados em cada vez mais impressionantes jogos de console, uma geração que crescia entre os embates do fim da União Soviética, do unilateralismo geopolítico ianque, das tentativas de fortalecimento da ONU e dos novos eixos da política americana. O sucesso foi de tamanha magnitude que multiplicou de modo espetacular uma série de produtos, o ''Universo Extendido'' semi-oficial, que possibilitou que os novos fãs criassem sua própria leitura daquele universo.

A morte de Han Solo






Na verdade, dei boas vindas à maior parte dos conceitos implementados na segunda trilogia. Ainda que a experiência cinematográfica não tenha sido satisfatória, as ideias desenvolvidas para Guerra nas Estrelas aprofundaram a mitologia e a elevaram de patamar. Eu as absorvi tanto quanto a nova geração, e imagino que o mesmo aconteceu com a maioria de nós que continuaram acompanhando a saga. Mas existia uma saudade do universo e dos personagens originais, e isso ficou nítido quando J.J. Abrams nos mergulhou de novo na ambiência dos primeiros filmes e, ao lado de novos protagonistas, trouxe de volta os velhos herois dos anos 1980.  Muitos se comoveram com a entrada de Solo na Millenium Falcon dizendo a seu fiel parceiro, ''Chewie, estamos em casa!'', ou com o encontro do mesmo Solo com a perene princesa Leia. [embora a nova geração vá crescer chamando-a de ''general'']. Os sentimentos positivos em relação aos novos filmes foram contrabalançados ao se perceber que os herois retornaram também para que fosse possível se despedir deles, algo que foi negado pelas obras de 1999 a 2005. O choro que se produziu em parte dos fãs mais antigos foi acrescido de resmungos quanto à partida de Luke. ''Agora a saga acabou'', li algumas dezenas de vezes. As reclamações incluíam o desenvolvimento dos personagens, e até Mark Hamill se juntou ao coro, embora depois tenha explicado que estava errado. O ator representava o fã antigo que havia sido retirado da zona de conforto.





Sensações parecidas podem ser percebidas entre os que conheceram a franquia nos anos 2000. Descobriram agora que a linhagem Skywalker está sendo deixada de lado; e se perguntam, atônitos, ''sobre o quê, afinal, é essa nova trilogia?'' Acusam a Disney de destruir seu objeto de afeição por razões comerciais -- como se a Lucasfilm não tivesse nascido como um negócio ou como se fosse desapegada de preocupações com o marketing. Em uma cena marcante d'Os Últimos Jedi, a Comandante Holdo, preparada para o sacrifício em prol da Resistência, encara seus companheiros de luta fugindo em transportes, na execução de um plano que ela mesma havia concebido, e diz, ''Boa sorte, Rebeldes!'' A frase me lembrou que a Disney havia lançado uma série que vem fazendo muito sucesso, ''Rebels". A animação, que já vai para a quarta temporada, se passa logo depois do Episódio III, e mostra a ''fagulha'' de inconformismo que desembocaria depois na organização de uma Rebelião formal contra o Império. Impossível deixar de notar a ponte que está sendo feita com a história contada agora nos cinemas, embora a temporalidade seja distinta. A nova trilogia se foca principalmente no público que está sendo criado assistindo ''Rebels'', com personagens diferentes daqueles rostos com que nos acostumamos, mas que se encaixam no contexto daquela galáxia muito distante.



Rey precisa de alguém que lhe mostre seu lugar em ''tudo aquilo''




E é esse o tema principal de Rian Johnson -- que, dizem, foi convidado para organizar a quarta trilogia que já está sendo pensada pela Disney, e espero que a informação não provoque uma série de suicídios de fãs inconformados pela ausência de um ponto final na saga --, como levar Guerra nas Estrelas para um novo público sem deixar de transmitir os elementos essenciais que fizeram da obra um marco do universo pop. Alguns elementos que capturaram a imaginação das outras gerações serão abandonados ou adormecidos. Ninguém falou até agora de midi-chlorians. O sangue Skywalker está deixando de ser central. Solo, Luke e Leia estão tão mortos quanto Anakin, Obi Wan e Padmé. É relativizada a suposta profundidade do embate político entre federalismo e autoritarismo, que Lucas encarava como uma luta que se perdia nas brumas da civilização. E nem a Ordem Jedi parece escapar do turbilhão de mudanças. A própria visão sobre a Força pode ser aprofundada, se levamos a sério tudo o que Luke disse. Ele nos mostrou outra dimensão dos poderes dos iniciados ao realizar uma projeção que era também materialização e capacidade de interagir com o mundo físico -- Yoda não é só um uma vaga presença conselheira tampouco, ele conjurou um relâmpago que incendiou a árvore sagrada dos Jedi. E o Diamante Negro, o poder bruto e originário, pode vir a ser tema de reflexões que prometem conduzir  Guerra nas Estrelas a outro nível. São mudanças que fazem estremecer os corações conservadores, que agora encaram a verdade de que a saga não lhes pertence, que não se comunica mais só com eles, e que um público ainda mais jovem vai reler à luz dos novos filmes tudo o que eles consideravam firmemente estabelecido. Como dizia o Bardo de Sobral, o novo sempre vem, e tanto conservadorismo quanto progressismo são insuficientes para lidar com ele.

domingo, 24 de dezembro de 2017

A diferença entre conservadorismo e tradição, ou: O Progressismo liberal destruiu Guerra nas Estrelas? Parte IV

''O Império, seus pais, a Resistência, os Sith, os Jedi...deixe o passado morrer. Mate-o, se for necessário. É a única maneira de se tornar aquilo que você está destinado a ser''

Kylo Ren




Luke avisa a Yoda e Obi-Wan que não mataria o próprio pai, frase que os mestres encaram como uma vitória do Imperador. O Padawan sabia mais do que os Anciãos



Ao longo da argumentação que venho tecendo, dei razão ao cerne da crítica conservadora a Guerra nas Estrelas: a franquia é de fato um instrumento de divulgação da sensibilidade progressista [por vezes uso também o termo liberal, embora nem todos os conservadores possam concordar com ele]. Ainda que não traga um discurso explícito e militante que reduza a obra a um mero marketing ideológico, a moldura ou arquitetura em que se desenvolvem as histórias está incrustada e formatada pela mentalidade progressista. Mas divisei também pelo menos quatro erros crassos na crítica mencionada: i) Ela não enfatiza que pode ser aplicada de modo geral a todo produto de Hollywood voltado para o grande público; ii) Ela dá a impressão de que o liberalismo passou a permear Guerra nas Estrelas apenas na nova trilogia, quando na verdade já está presente desde seus primórdios e em todo o seu desenvolvimento; iii) não percebe que, assim como nos outros filmes da saga, os lançamentos recentes tampouco se reduzem ao progressismo, e é possível separar neles os elementos mais profundos ou reinterpretar a obra a partir de um olhar menos limitado; iv) a própria crítica conservadora está cerceada por restrições que a impedem de apreciar algumas das maiores qualidades dos novos filmes.









Yoda ensina que o medo leva ao ''lado escuro'' da Força; de modo similar, também faz com que a crítica conservadora caia em algumas forçações de barra e leituras enviesadas do enredo e das cenas d'Os Últimos Jedi. Um exemplo é a sugestão de Mateus Diniz, feita neste texto com que dialogo e que torno fio condutor das minhas postagens, de que a relação entre Holdo e Leia está impregnada pela sensibilidade gay. Ora, o filme aponta a ligação entre duas guerreiras e amigas que se conheciam há muito tempo, batalharam juntas contra o mesmo oponente, e se despedem na certeza que de uma delas vai ao encontro da morte. Não há qualquer laivo erótico ou implicação outra nas cenas. Outra sugestão é a de que no próximo filme o personagem de Oscar Isaac será retratado como homossexual. Não digo que seja impossível, afinal a pauta de defesa pelos direitos gay é elemento importante da militância liberal de Hollywood. Mas é imensamente improvável: primeiro porque, quando se trata de produtos destinados a um grande mercado, a implementação dessa agenda se dá de modo bastante sutil e marginal, e isso já há meio século. [não sejam ingênuos para não perceberem as insinuações por trás dos trejeitos de ''mordomo'' de C-3PO]. Segundo, tudo indica que o novo líder da Resistência vai viver uma história romântica com Rey.








As decisões equivocadas do impulsivo Dameron provocam consequências catastróficas: um líder em formação aprendendo com os próprios erros




Esse tipo de forçação impede os conservadores de notarem uma das mensagens mais poderosas d'Os Últimos Jedi, problema que pode ser exemplificado com as análises que alguns fizeram em cima dos arcos de Poe Dameron e Luke: O Episódio VIII nos revela um membro importante da Resistência ao mesmo tempo corajoso e impulsivo, incapaz do pensamento estratégico necessário a uma liderança confiável. Como resultado, todos os seus planos e decisões acabam conduzindo ao desastre. Há quem diga, com certa razão, que a maior parte das mortes de rebeldes é provocada pela imperícia do sujeito.O arco de Dameron se coaduna bem com a intenção de Rian Johnson de dobrar as expectativas dos fãs, levando-os a situações bastante familiares e consagradas apenas para resolvê-las de modo inesperado -- lembro mais uma vez aqui a frase de Skywalker para Rey, ''isso não vai se passar do modo como você imagina''. A bravura cega do piloto faz com que a Resistência perca toda a sua frota de bombardeiros em troca da destruição de apenas um encouraçado da Primeira Ordem. Depois conduz a um plano mirabolante -- porém arquiconhecido dos que acompanham a franquia -- de invasão de uma gigantesca nave inimiga para sabotá-la por dentro, quase provocando a destruição total dos Rebeldes --  que só não ocorre por causa, agora sim , do heroísmo da Comandante contra a qual Poe havia se amotinado. Como lhe diz Leia, ''Holdo estava mais preocupada em proteger a fagulha [da rebelião/esperança] do que em ser vista como heroi''.






Para os conservadores, a cena se tornou reveladora da intenção de Hollywood usar Guerra nas Estrelas para defender a subordinação dos homens às mulheres. As virtudes masculinas de Dameron, segundo eles, não seriam suficientes para proteger a Resistência. As duas mulheres na liderança, Leia e Holdo, é que possuiriam o domínio emocional necessário à função. O problema dessa abordagem é que, embora as cenas afirmem de fato o protagonismo feminino -- tema já tratado em postagem anterior --, o roteiro não mostra Poe fracassando por ser homem, e sim por ser um jovem temerário. A imaturidade de Poe é que lhe fazia pensar que sabia mais do que aqueles que ocupavam posições mais elevadas. Ele não conseguia ver os motivos, a estratégia, por detrás das ações dos mais experientes. Eis aqui um tema recorrente em Hollywood, as novas gerações seriam portadoras de uma verdade que a antiga não é capaz de divisar por causa de seu apego a modelos ultrapassados. Rian Johnson subverte essa noção. A mensagem é tão nítida que, após o sacrifício de Holdo, Poe se torna o líder que nasceu para ser, sem no entanto perder nada de sua virilidade. Ele se torna capaz de abortar uma missão suicida contra o aríete/estrela da morte no terceiro ato do filme. Nos momentos finais, demonstra a habilidade -- antes de Leia, frise-se -- de compreender as intenções de Luke -- um homem que, naquele momento, unia heroísmo e estratégia em prol de um bem maior -- e salvar o que restava dos rebeldes. A nova posição de Poe Dameron é confirmada pela própria Leia, que diz aos seus subordinados, ''por que estão olhando para mim? Sigam-no!'', e reforçada por uma das frases de Luke em diálogo com Kylo: ''a Resistência se revigorou hoje'', frase acompanhada pela aparição do rosto de Dameron na tela. O garoto imaturo havia se tornado um homem.





Rey é mais uma representação dos fãs esperando mais do mesmo, Luke ''pegaria uma espada de laser e sairia pela galáxia detonando sozinho a Primeira Ordem''





A mesma mensagem é passada no relacionamento entre Rey e Luke, reforçando que não se está discutindo nenhuma ''guerra dos sexos''. Nesses últimos dias, acompanhei pela Internet leituras que viram nas ações de Skywalker sintomas de covardia e depressão. Alguns chegaram a dizer que Rey deu ''uma lição de moral'' no Mestre Jedi. Confesso ter percebido diferente: embora demonstre pesar pela perda de Ben Solo, a questão que envolve Luke na Ilha Sagrada é mais ampla do que seus próprios dramas de consciência. Ele não quer ser o professor de Rey porque entende que os Jedi devem acabar, que seus métodos são falhos e que, no fim das contas, o orgulho da Ordem é um dos motores do conflito cósmico. Ele oferece a Rey três lições: a primeira, de que a Força é um poder originário que não pertence a ninguém, e que portanto é vaidade vincular o lado luminoso à existência histórica dos Jedi; a segunda, é a de que o legado dos Jedi é o fracasso, que eles não conseguiram escapar do ego e de suas consequências, retratadas no filme como a sombra que passa pela mente de Luke em relação a Kylo e que leva à luta entre mestre e discípulo; a terceira não é dada, pois Rey, passando por cima dos conselhos do Mestre e achando que havia visto algo que ele não havia sido capaz de ver, abandona a Ilha.






Rey não me parece ter condições de ''dar lições de moral'' em Luke tampouco. A todo momento ela se mostra presa na necessidade de encontrar seus pais, quer vivenciar uma mentira, a de que vem de uma linhagem importante e marcada pela nobreza -- fragilidade que vai ser explorada por Kylo mais à frente. A todo momento se mostra impermeável ao que lhe está sendo ensinado: Assim como R2-D2, Chewbacca e boa parte dos fãs, a protagonista fica atônita, tentando argumentar com Luke sobre seus motivos, que ela não conhece e ainda assim repudia. Rey deseja a repetição de temas passados, e sai frustrada sempre que isso lhe é negado. O sabre de luz que estende a Luke é jogado fora com desprezo. No início, ela se recusa a crer que o Mestre havia falhado com Kylo, o ''monstro''. Depois, sua carência a leva a uma ligação com o adversário que a impede de acreditar que o parricida tivera sido totalmente consumido pelo ''lado sombrio'', como Luke lhe havia contado. Ela concordava agora que Luke havia falhado, mas porque não havia percebido, como ela supostamente conseguira, que Ben Solo ainda não havia feito sua escolha, que existia conflito no coração do vilão. Deixando de lado os conselhos daquele que queria por mestre, Rey decide emular a ''lenda'' de Luke -- que deixara de lado as sugestões de Yoda e Obi-Wan a respeito da necessidade de matar Vader --, e se entrega ao inimigo para ''convertê-lo'' à luz. Mais uma vez Rian Johnson constrói sua narrativa em cima das expectativas dos fãs de longa data, mas dessa vez as coisas não ocorrem como eles e a protagonista pensavam:  Ben Solo está de fato morto, como Luke havia entendido desde o início. A história não se repete, a não ser como farsa. Rey havia sido manipulada pelo ''lado sombrio'' ao não confiar no que lhe dizia Skywalker.





Rey pensa ter visto algo que Luke não foi capaz de ver e emula o Mestre ao se entregar para o inimigo visando convertê-lo para a Luz: os jovens estão sempre um passo atrás ao esperarem a repetição de modelos passados






O núcleo da narrativa, detalhado por Yoda diante da Árvore Sagrada em chamas, e depois pelo próprio Luke em seu encontro com Leia, é que os mais velhos, os antigos mestres, devem ser ouvidos, inclusive por causa de seus fracassos. Temos aqui um filme que ambiciona, por um lado, levar Guerra nas Estrelas a uma nova geração -- ponto a que voltarei mais tarde --, e para isso rompe gradualmente com os antigos personagens e com a família Skywalker, as principais marcas das trilogias anteriores. Por outro lado, os jovens devem se afirmar sem que o passado seja totalmente esquecido. Enquanto Kylo pede por uma ''emancipação'' total com suas raízes, os herois afirmam a continuidade de seus elementos essenciais, ainda que essa continuidade não seja retratada por um desesperador e vazio ''eterno retorno''. Diferente do que diz Mateus Diniz, o roteiro não se trata de inversão dos papéis entre mestres e discípulos, uma quebra da autoridade tradicional -- uma crítica que cairia melhor aos filmes da primeira trilogia, afinal Luke se transforma em lenda na medida em que se nega a fazer aquilo que lhe é  sugerido por Obi Wan e Yoda, a saber, abandonar seus amigos ao sofrimento nas mãos de Vader até que tenha poder suficiente para matar o próprio pai -- e sim da valorização da transmissão de conhecimento mesmo quando as instituições mais conhecidas para a realização dessa passagem -- a família, simbolizada aqui pelo sangue Skywalker, e o sistema discipular jedi, figurado pela relação mestre e padawan -- estejam à beira do colapso e do esvanecimento. De modo contrário ao que pensa a crítica conservadora, é a primeira trilogia que traz jovens mais sábios do que os anciãos; e é o episódio atual que sente necessidade de mostrar aos jovens o verdadeiro sentido da tradição discipular.



Kylo Ren vê na ruptura total com o passado o caminho para se realizar todo o seu potencial: a visão é criticada ao longo de todo o filme, mas ''não do modo como você imagina''





Resta responder a uma pergunta: qual é a real fonte das críticas conservadoras, e também daquelas de fãs da primeira e segunda trilogias, aos novos desenvolvimentos da saga implementados por Abrams e Johnson? Tratarei desse problema na parte final dessa série de postagens.









[continua]
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sábado, 23 de dezembro de 2017

O Diamante Negro, o bruto Poder que vem de baixo, ou: O progressismo liberal destruiu Guerra nas Estrelas? Parte III

''Temos um heroi de volta nos Estados Unidos hoje porque temos um novo candidato para Presidência dos Estados Unidos, Barack Obama...Para todos nós que possuímos sonhos e esperança, [Obama] é um heroi.''

George Lucas

George Lucas possui conhecimentos de mitologia e história antiga, que usou para construir sua Saga, mas é possível também perceber sua sensibilidade liberal e social democrata em toda a narrativa


Este texto é o terceiro de uma série de postagens que se iniciou aqui e continuou aqui. Neles, debato as críticas que conservadores e direitistas em geral fazem ao progressismo [liberal, embora nem todos possam concordar com o uso desse último termo] que teria tomado conta da franquia Guerra nas Estrelas agora que ela se encontra sob a batuta dos estúdios Disney. Como fio condutor, dialogo com este texto de Mateus Diniz, que tem nítido sabor ''olavético''. Na postagem de ontem, busquei mostrar que o protagonismo feminino tão criticado na trilogia atual já estava intencionado e executado na saga desde seus primórdios. Agora, pretendo avançar na discussão de outros aspectos político-sociais  presentes no Episódio VIII.






Um dos pontos que mais tem chamado a atenção dos críticos ao arcabouço liberal em que ''Os Últimos Jedi'' estaria mergulhado é o caráter multi-étnico dos personagens do filme. Temos importantes personagens brancos, mas também orientais e negros. Mateus Diniz chega a citar a presença de um [possível] relacionamento inter-racial entre Finn e Rose [n'O Despertar da Força, Finn havia se enamorado por Rey]. Também nota que a relação entre Phasma, que agora sabemos ser uma mulher branca, e Finn evoca uma crítica ao racismo. Phasma diz para seu rival que ele ''sempre havia sido escória''. Posicionado em um plano mais elevado que sua antagonista, o novo heroi da Resistência responde sorrindo, ''escória rebelde''.






Não vou ''problematizar'' a interpretação da cena entre a líder Stormtrooper e seu antigo subordinado. Digamos que ela tem de fato um caráter de luta racial. Nesse sentido, Guerra nas Estrelas estaria fazendo de forma extremamente tímida uma metáfora que já era bem mais explícita em filmes de ficção científica meio século atrás, como é o caso d'O Planeta dos Macacos. Não me parece nada realmente ousado. Tampouco me parece inovadora a busca por ''representatividade'' étnica, para usar uma palavra bastante em voga em meios progressistas. Na verdade, essa discussão é mais uma que remonta à primeira trilogia de Guerra nas Estrelas, quando para responder às críticas de que sua galáxia era demasiadamente branca, George Lucas criou o personagem de Lando Calrissian, vivido por Billy Dee Williams. O mercenário/empresário nada mais era do que um Han Solo menos carismático, cujo papel se estica por dois filmes da primeira trilogia, e que muitos fãs querem ver de novo no próximo episódio.






Muitos fãs se escandalizaram com um stormtrooper negro, mas a diversidade étnico-racial já é tema de Guerra nas Estrelas desde os primórdios


Lando Calrissian não é uma exceção, e eu não preciso sequer citar os importantes atores negros que, como dizer, não aparecem nas telas em sua negritude humana mas que são inesquecíveis: a voz de Darth Vader, por exemplo, é de James Earl Jones. Assim como temos uma atriz negra, Lupita Nyong’o, por trás de Maz Kanata na atual trilogia, também tínhamos Ahmed Best como modelo para Jar Jar Binks e Femi Taylor como a escrava Oola, a dançarina acorrentada ao trono de Jabba. Outros personagens negros aparecem na segunda trilogia, como o comandante das tropas voluntárias de Naboo, o capitão Panaka vivido por Hugh Quarshie. Por fim, Lucas retratou negros na instituição mais significativa e quiçá mais importante do governo da galáxia, o Conselho Jedi: o Mestre Windu, um dos mais poderosos cavaleiros da Ordem, e interpretado na ''prequência'' por Samuel Jackson.





O Conselho Jedi, instituição mais importante da República, é composto por Mestres de raças, espécies e mundos diferentes





Diante de todos esses exemplos, a real questão a ser colocada é: por que os conservadores e direitistas ficaram tão sensíveis com a escolha de John Boyega como um stormtrooper desertor? É óbvio que a busca pela diversidade racial não foi inventada do nada por Abrams e Johnson, ela é um elemento bastante antigo e com o qual todos os fãs cresceram. Os atuais personagens orientais dão continuidade a essa tendência, não trazem nenhum salto qualitativo, assim como a presença de três ou quatro mulheres em posição de liderança também não transforma significativamente uma saga que já mostrava desde o início uma ou duas com esse mesmo perfil. Seria perspicaz olhar para o panorama político mais geral a fim de compreender que o cosmopolitismo liberal sempre foi tema caro a Guerra nas Estrelas. Vamos elevar aqui a crítica conservadora de Mateus Diniz a uma dimensão na qual ele não ousou chegar por causa, talvez, dos limites de sua própria ideologia.






Guerra nas Estrelas é o sonho de qualquer globalista. Ali, a aldeia global não é realizada em um planeta, mas em toda a galáxia. Todos aqueles trilhões de seres se submetem a um governo único e às mesmas instituições liberais: um Senado galáctico, uma espécie de parlamentarismo universal, em que todos os sistemas tem voz. Temos a realização da paz kantiana tão desejada por iluministas e advogados do otimismo antropológico. Guerra nas Estrelas é a defesa de uma ONU que deu certo e uma apologia à democracia. Essa galáxia é extremamente cosmopolita: não são apenas as diferentes raças que convivem, mas seres de diferentes espécies e mundos tem acesso a todas as atividades do governo e da economia baseados fundamentalmente no mérito individual. Pior ainda, essa galáxia é capitalista, e seu governo se dedica, principalmente, à segurança e à regulação das atividades econômicas, principalmente o comércio.



O Senado da Galáxia: o globalismo liberal abraça toda a galáxia, envolvendo-a em universalismo, meritocracia e cosmopolitismo



Alguém pode recordar que Lucas se fundamentou em teorias políticas clássicas, que remontam a Platão e Aristóteles, pretendendo mostrar como uma democracia pode se corromper e degenerar. A  luta entre liberdade e tirania seria antiga, se manifestaria em toda a História. Correto, desde que não se esqueça que ele possuía também referências muito mais recentes na construção de seu universo. George Lucas afirmou claramente em mais de uma entrevista que se inspirou na administração Nixon e na Guerra do Vietnam para compor sua batalha ideológica sideral. E para quem ainda tem algumas dúvidas, eis que o maestro da franquia diz com todas as letras que ''Anakin Skywalker é um jovem promissor que vai para o lado sombrio por causa de um político mais velho e se torna Darth Vader. George Bush é Darth Vader. Cheney é o Imperador.'' Nada mais explícito do que o terceiro ato d'A Vingança do Sith, que coloca uma frase de George Bush na boca de Anakin/Vader enquanto Obi Wan grita que ''defende a democracia''. Se o criador da franquia realmente pensa que esse embate entre tirania e democracia se perde nas brumas do tempo, ele claramente pensa também que o lado da luz está com os Democratas.



Anakin se torna Darth vader n'A Vingança do Sith, e em seu diálogo com Obi Wan reproduz uma fala de George Bush



Evidente que é possível reinterpretar essas mensagens à vontade, e o ''Universo Expandido'' e a imaginação dos fãs estão aí pra se apropriarem como queiram da obra. Os próprios conservadores e Republicanos fizeram isso muitas vezes, alegando que o Império era na verdade o totalitarismo soviético, que a Força era uma metáfora para os valores judaico-cristãos -- e Reagan não hesitou em dar o nome de ''Guerra nas Estrelas'' ao projeto de escudo de mísseis que os Estados Unidos começavam a implementar nos anos 1980. Porém, o caráter progressista, liberal, cosmopolita, globalista e vinculado à sensibilidade do Partido Democrata americano é óbvio demais na Saga. O que a Disney faz é dar continuidade a essa abordagem transformando a Primeira Ordem e o General Hux, comandante de seu exército, em alegorias para os nazistas. Assim como os jovens pilotando caças X-Wings, não posso imaginar nada mais, como dizer, americano. E Guerra nas Estrelas é isso, desde o início é uma ode aos valores americanos triunfantes no pós Segunda Guerra Mundial.



Luke Skywalker em momento Top Gun, realizando o sonho do jovem camponês de pilotar um caça em defesa da liberdade



A apresentação da Primeira Ordem com traços nazistas também serve ao objetivo da nova trilogia em dissociar a história da família Skywalker. Quando Lucas decidiu n'O Império contra ataca que Vader era pai de Luke e Leia, deu início a uma leitura que transformou a sensibilidade à Força cada vez mais numa possibilidade de casta ou aristocrática. Não me entendam mal: não estou concordando com as críticas de fãs que pensam que Rey jamais poderia realizar grandes feitos sem um treinamento rígido com um Mestre. Elas erram o alvo, esquecem que o próprio Luke não passou mais do que alguns dias convivendo com Yoda antes de enfrentar o próprio pai; e que, tendo conversado algumas horas apenas com o Mestre Kenobi, foi capaz de pulverizar a Estrela da Morte sem necessidade do computador de bordo de seu caça. A ''aristocratização'' da sensibilidade à Força estava no apelo ao sangue Skywalker, mais tarde reforçado com o conceito de midi-chlorians. Essa aristocratização nunca se consolidou de modo integral, pois existiam outras linhagens capazes de gerar seres poderosos como Yoda, Windu, Palpatine e Obi Wan; e porque Anakin, o ''escolhido'', havia nascido sem pai, gerado do sangue de uma escrava. Mas esse olhar era forte o bastante para que muitos fãs vissem nos desenvolvimentos da nova trilogia a suprema blasfêmia, para eles, da ''plebeização'' da Força.



A Primeira Ordem como alegoria para o Nazismo: em Guerra nas Estrelas, o mal ancestral é sempre associado com os inimigos da sensibilidade democrata americana



E eles estão parcialmente corretos, a Disney está abandonado esse conceito e adotando uma perspectiva mais igualitária, que defende que a Força, esse poder originário, pode se manifestar em qualquer ponto do cosmos. Há uma ênfase maior no elemento presente no nascimento de Anakin de uma escrava, transformando os proscritos, os órfãos, os marginais, os indivíduos ligados às atividades mais baixas da República -- como sucateiros, agentes de limpeza e lixeiros -- nos novos protagonistas da galáxia. Essa linha de raciocínio prossegue no novo panorama político-social da saga. Em vez de perder tempo com um confronto superficial entre partidários da democracia e da ditadura, os novos filmes da Disney avançam como nunca antes críticas à elite econômica que lucra com ambos os lados. O decodificador/ladrão vivido por Benicio del Toro argumenta com Finn que essa elite vende armas tanto para a Resistência quanto para a Primeira Ordem, tanto para ''mocinhos'' quanto para os ''bandidos''. A guerra nada mais era do que uma ''máquina'' feita para engordar aqueles que são cínicos o suficiente para não atrelarem sua moral a um só dos lados. Rose, falando com a voz dos escravos, espoliados e oprimidos, ensina a Finn que ninguém fica tão rico naquela galáxia sem lucrar com a opressão, e revela seu sonho de ''colocar abaixo aquela cidade'' em que os ricos se divertiam, expressão de seu desejo de derribar a ordem social que escora a galáxia.






Esse desenvolvimento da nova trilogia nos traz a oportunidade de reler a saga para melhor, fazendo pó de todo o arcabouço superficial erguido sobre as disputas partidárias americanas. Mais do que democracia ou ditadura, trata-se da necessidade de uma revolução nascida das bases contra os parasitas que se divertem enquanto os dois lados políticos se matam. Esotericamente, aquele mundo caótico e corrupto vê a Força se manifestar a partir das castas mais inferiores, ou mesmo dos sem casta, dos marginais -- uma apreciação vetada à perspectiva conservadora de cores ''olavéticas''. Noto aqui que Mateus Diniz, incomodado por [finalmente] descobrir que havia diversidade étnica na franquia, não estendeu sua repulsa ao estereótipo nazi-fascista dos vilões. Mas bateu forte no caráter subversivo representado pela ascensão de uma Força que vem de baixo, onde supostamente se encontraria o ''lado sombrio'', debaixo da Ilha, para onde Rey foi diretamente conduzida na primeira lição que lhe ofertou Luke: esse poder bruto, o Diamante Negro [1]  -- possível futuro nome do próximo episódio -- cuja contemplação atenta foi capaz de levar temor ao coração do Mestre.

Rey e o poder que vem debaixo da Ilha: há rumores que o próximo episódio será batizado de ''Diamante Negro'', uma menção ao temível poder bruto mencionado por Mestre Luke





Na próxima postagem vou abordar o tema Tradição na nova trilogia, mostrando também como o espírito meramente conservador da maior parte das críticas atuais distorcem certas mensagens do filme, impedindo que se vislumbre todo o potencial e qualidade dos rumos atuais da Saga.









[continua]


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[1] Título do futuro episódio é revelado