quinta-feira, 24 de abril de 2014

O Noé de Aronofsky entre o gnosticismo e o cristianismo -- parte 1




Choveram críticas ao filme Noé, estrelado por Russel Crowe, por não seguir a narrativa bíblica. E lá fui eu prevenido ao cinema, pronto pra ver mais uma distorção humanista e secular de algum enredo cristão. Mas eis que o filme é excelente! A história de Gênesis é contada tendo como fio condutor uma costura de mitologia gnóstica, mas sempre em diálogo teológico com o conteúdo das Escrituras. Não há um aprofundamento monumental, claro, estamos falando de Hollywood. Também não há de se confundir a qualidade do filme com a de Ben-Hur ou similar. Mas o resultado está longe de ser ruim. Darren Aronofsky construiu um filme nada trivial e deu a cara a tapa pra todos aqueles que esperavam ou uma visão agnóstica ou uma perspectiva literalista do Patriarca Bíblico. Parece que o sujeito flerta com o misticismo judaico, e, consciente ou inconscientemente, sua película está permeada de símbolos e temas cabalísticos. No fim das contas, a película não perde seu gosto ''ortodoxo'' e cristão apesar das mudanças na história e nos personagens. Muitas análises da obra se mostram confusas sobre o que viram. [1] Abaixo faço alguns comentários sobre alguns dos assuntos abordados. 


O diretor que não é ateu

Em diversas matérias sobre o filme li que Aronofsky seria ateu. Muitos dentre os que preferiam que a história bíblica fosse recontada a partir de uma visão secular pretenderam ver na narração da criação feita por Noé uma menção à suposta falta de crença religiosa do diretor. No filme se diz que ''No Princípio não havia nada, apenas trevas infinitas''. Esta frase, no entanto, passa longe de qualquer agnosticismo, ainda quando contrastada com todo o contexto que se segue. A existência do Criador é dada por certa por todos os personagens, e ele mesmo intervém na fluxo dos acontecimentos, mantendo contato com Noé por meio de visões e sonhos. A noção de ''trevas'' e ''nada'' original é comum em textos gnósticos para se referir à Infinitude Divina, completamente apartada de qualquer definição possível. Aliás, este aspecto permeia todo o filme: o Criador intervém e se comunica, mas seu caráter misterioso e transcendência permanecem em todo o momento. Quando se fala dele e de sua vontade, é sempre sob o olhar dos homens, que buscam compreender o que está acontecendo da maneira que podem e em seus próprios limites. Ou seja, não há no filme um narrador onisciente que possa dizer, de modo exato, aquilo que o Criador realmente tem em mente. Mesmo Noé sabe apenas fragmentos da verdade, e necessita de auxílio de outros para compreendê-los. 



As minas de Tzohar

Nos versículos sobre a construção da Arca, no capítulo 6 de Gênesis, Deus diz a Noé para iluminá-la com um ''tzohar''. A palavra pode significar uma abertura, um janela que traria iluminação de fora. Mas no misticismo judaico era encarada como sinônimo de uma gema ou pedra mística que guardaria em seu interior a luz divina. Tzohar é o símbolo da luz celeste que existiria no interior da própria Criação, e que seria fonte de poder e iluminação para todos que a possuíssem. No filme, os homens escavam e destroem o mundo em busca de Tzohar, pedras luminosas com as quais erguem suas cidades e tecnologia. Não se fala muito sobre elas, mas fica nítido que toda a terra é quase que uma grande mina de Tzohar, alvo da ganância dos filhos de Caim. Vemos Tubalcaim usar uma pedra destas como arma e é também através dela que Noé produz luz e calor na Arca. O brilho das pedras é idêntico no filme ao dos ''Guardiões'', seres espirituais decaídos e presos em corpos de rocha, e dos quais falarei logo mais.


O xamanismo e o misticismo judaico

Em algumas entrevistas, Darren Aronofsky se diz cético quanto à religião organizada mas interessado na ''verdadeira espiritualidade'' que ''uniria todas as religiões''. Afirma também ter conhecido cabalistas e xamãs capazes, segundo ele, de realizar milagres reais [2]. Isso explica até certo ponto o retrato que fez de Matusalém. Nas Sagradas Escrituras, ele é pai de Lamec, pai de Noé. O vínculo parental é mantido no filme, mas sua importância é bastante amplificada. Noé começa a ter visões da Queda de Adão e Eva e da mortandade do Dilúvio e resolve procurar seu avô para que ele o ajudasse a entender as mensagens vindas do Criador. Empreende então uma peregrinação, fugindo dos malévolos filhos de Caim e atravessando a terra dos ''Guardiões'', dos quais cai prisioneiro. No caminho, resgata e acaba adotando uma menina, Ila, cuja aldeia foi toda saqueada por homens em busca de Tzohar. A menina tem um ferimento grave que a torna em uma mulher estéril. Um anjo decaído, reconhecendo em Noé uma centelha do Adão original, o guia até a alta montanha onde habita seu avô. Matusalém conhece artes mágicas, possui uma sabedoria ancestral e é versado em poções de poder. Ele fica intrigado ao saber da visão do Dilúvio, já que seu pai, Enoque [que nas Sagradas Escrituras ''anda com Deus'' e é por Ele arrebatado vivo para os Céus], havia lhe contado que o mundo chegaria ao fim por meio do fogo. Faz então uma bebida que auxilia Noé a aprofundar sua percepção da visão recebida. Matusalém passa boa parte do filme, até sua morte no Dilúvio, procurando frutos silvestres, cuja existência e sabor já haviam se apagado de sua memória -- que por sua vez foi reavivada por seu neto, Sem, que conta ao avô que tais frutos eram aquilo de que mais gostava no mundo. A intervenção mais poderosa do grande xamã ocorre a pedidos da mulher de Noé, que teme que seus filhos morram sem descendência. A benção de Matusalém coloca fim à esterilidade de Ila.



As duas linhagens

Após o primeiro homicídio, o de Abel pelas mãos de seu irmão Caim, a humanidade se divide em duas linhagens. Os descendentes de Sete, terceiro filho de Adão e Eva, que foi gerado em substituição a Abel, mantém a fidelidade ao Criador e invocam Seu nome. A descendência do amaldiçoado Caim, por sua vez, vive de acordo com sua própria vontade. Este tema, comumente presente na literatura gnóstica, também está explicitado nas Sagradas Escrituras. A linhagem de Caim cria as primeiras cidades, torna-se especialista na guerra, na tecnologia e na mineração do Tzohar. Uma de suas principais características no filme é o consumo de carne, uma marca de sua profunda separação da linhagem de Sete. Em uma das cenas iniciais do filme, Lamec está pronto a iniciar Noé no segredo passado de pai para filho desde o Éden. Com o braço envolto na pele da serpente original do paraíso perdido, ele diz ao filho que ''O Criador fez o homem à Sua imagem e deu-lhe o cuidado do mundo''. Mas esta iniciação é interrompida quando Tubalcaim, rei dos homens e descendente de Caim, mata Lamec e toma para si a relíquia sagrada, ou seja, a pele da serpente. Para Tubalcaim, a expulsão do Éden o obriga a viver com o suor de seu rosto, e ''ai dele senão tomar aquilo que deseja''. Em uma das cenas iniciais, Noé vê Sem, seu filho, colhendo uma flor por causa da beleza da dita cuja. Ele o repreende, dizendo que cada coisa tinha seu lugar na ordem natural, e que eles só deveriam pegar aquilo que precisassem. A ênfase na harmonia desta ordem natural é tão forte em Noé que ele chega a matar caçadores de animais, tomando para si a tarefa de realizar Justiça contra os homens, que não viveriam segundo a realidade edênica primitiva. Tubalcaim tem uma perspectiva diferente sobre o papel da humanidade. Ele não hesita em domesticar, matar e comer animais, incluindo aí os raros exemplares salvaguardados na Arca. Em conversa com um dos filhos de Noé, Cam, o rei dos cainitas explica que o homem, imagem do Criador, está acima da natureza, e que todos os demais entes devem servi-lo: ''O mundo é para nosso usufruto; saboreio-o'', afirma, enquanto atira um pedaço de carne para Cam. Na primeira interpretação das visões que recebe, Noé conclui que a Justiça Divina se abaterá sobre os cainitas, que seriam dizimados pelo dilúvio. As águas separariam a linhagem impura da pura e assim o mundo poderia ser renovado pelos descendentes de Sete, retornando à bondade original. 


Os anjos caídos

Em um dos versículos mais misteriosos das Sagradas Escrituras, os ''Filhos de Deus'' são atraídos pela beleza das ''filhas dos homens'', procriando com elas e gerando uma raça de gigantes, os heróis conhecidos nos dias antigos. As Epístolas neotestamentárias confirmam a mencionada queda dos anjos, afirmando que eles foram acorrentados por causa deste pecado. Até o século IV, a maior parte dos Santos Padres corroborara esta interpretação, mas a partir de então uma visão alternativa nasceu, a de que os ''Filhos de Deus'' citados seriam descendentes de Caim que teriam se misturado com a linhagem de Sete. Na literatura gnóstica, particularmente no famoso ''Livro de Enoque'', os anjos luxuriosos que fornicaram com mulheres teriam ensinado aos homens as artes e ofícios da guerra e da civilização, além das artes mágicas e a feitiçaria. Como punição, teriam sido aprisionados sob montanhas, como Titãs no Tártaro. O filme mantém grande parte desta estrutura narrativa, inclusive dando aos seres decaídos o mesmo nome que recebem no Livro de Enoque e no misticismo judaico, mas com algumas modificações. Em nenhum momento se diz que os anjos caíram por luxúria, e sim por amor e piedade aos homens. Uma vez chegados à terra, eles teriam sido revestidos por corpos pesados, de pedra, sob a qual ainda se poderia ver, de longe, o fulgor de seu brilho original. Assim aprisionados ao mundo, teriam buscado auxiliar os cainitas com os segredos da civilização, apenas para se decepcionarem com a crescente maldade dos homens. Foram inclusive caçados por eles, e tiveram de se esconder, desesperançados, em terras estéreis e desoladas. Depois da desconfiança inicial, esses anjos decidem ajudar Noé, convencidos de que ele foi enviado pelo Criador, ao qual poderiam mais uma vez servir. Aronofsky entrelaça mais um tema na história dos anjos caídos. Na literatura gnóstica, as almas pessoais são partículas da Divina Sofia, que havia sido aprisionada ao grosseiro e corrompido mundo material, e que deveriam ser libertadas pelo conhecimento, retornando ao seu verdadeiro lar, a realidade supra-espiritual. Aronofsky  faz com que o brilho dos seres decaídos por trás de seu disforme corpo rochoso seja o mesmo da gema do Tzohar. Os ''Guardiões'' defendem a Arca do exército dos descendentes de Caim, que nela desejam entrar à força. Nesta batalha, o líder deles, Samyaza, é ferido na altura do coração. Mas não morre, antes é libertado do corpo de rocha e ascende verticalmente aos céus. Os demais "Guardiões'' percebem que o Criador permitiu que ele retornasse para 'casa' e intensificam sua luta. Um a um caem na batalha, deixando seus corpos e ascendendo de volta aos céus. 


[continua...]


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[1] O teólogo Brian Mattson descreve o filme como gnóstico [Simpatia pelo Diabo], já o cristão ortodoxo Peter Chattaway diz que a obra é tudo, menos gnóstica [Noé não é gnóstico], preferindo-a encara como uma forma de midrash judaica concordante, em sua maior parte, com a perspectiva cristã tradicional.

[2] Entrevista de Aronofsky e Mais uma entrevista de Aronofsky: diz ele que ''When we started working on Pi and putting these elements into the film, I used my Hassidic connections in Brooklyn to get to some of the leading Kabbalah scholars in the world. There are basically three heavy-duty rabbis out there who are these big, big mystics. They're like these Jewish shamans that go around the world and perform little miracles. They shared a lot of their secrets with me, and a lot of their stories. There's some stuff that would blow your mind and we brought that to Pi. Everything in the film is completely, 100% true.''













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