domingo, 6 de abril de 2014

''Não permitirás viver uma feiticeira''

The sort of man who injures others by magic knots, or enchantments, or incantations, or any of the like practices, if he be a prophet or diviner, let him die.

Plato, Laws 9.933d.

 
Exemplo de propaganda anti-religiosa em fóruns de debate
Uma das críticas comuns feitas por muitos ateus e agnósticos militantes quando se reúnem em fóruns e redes sociais que versam sobre apologética religiosa é sobre a Inquisição. As alegações costumam ser acompanhadas das mais esdrúxulas superstições históricas, como a ideia de que milhões de mulheres foram mortas pela sanha misógina e crédula de sacerdotes sádicos. Não é raro que se compare a Inquisição ou a prática de queimar bruxas ao Holocausto ou outro genocídio contemporâneo [1]. A imagem acima, por exemplo, faz uma confusão entre coisas diferentes quando associada com a pergunta. A fogueira era um forma de aplicar a pena de morte comumente usada nas regiões abrangidas pelo Império Romano, principalmente em justiçamentos populares, e seu uso cresceu quando a cristianização pôs fim à crucificação. Era utilizada não só pelas populações camponesas quanto pelas autoridades seculares. Já o versículo citado se dava em outro contexto de aplicação da pena capital: os israelitas apedrejavam os condenados à morte [2].

O cerne de toda esta questão é, por um lado, a pena de morte; e, por outro, o de saber que crimes seriam repugnantes o suficiente para aplicá-la, e também sobre os meios de levá-la adiante. Eu penso que existem crimes que tornam aquele que os cometeu passível de morte. Já que a sanção deve acompanhar a gravidade do delito não há porque afirmar que a pena de morte seja incorreta em princípio [3]. Para quem parte desta noção, somente os mais bárbaros crimes justificariam tamanha sanção -- geralmente aqueles que colocam a vida de indivíduos ou da comunidade em risco. No Brasil, por exemplo, há pena de morte quando do estado de guerra: o desertor é passível de fuzilamento. Outros países estendem o leque de atos típicos cuja sanção é a pena capital, aplicando-a em tempos de paz a crimes de lesa-pátria, a homicídios, estupros [uma discussão atual na Índia] etc. 

A discussão sobre que crimes seriam passíveis dessa sanção é algo, definitivamente, em aberto. E aqui entra um ponto chave dessa conversa, inclusive para aqueles que concordam com a aplicabilidade da pena capital, o de saber se a prática da feitiçaria poderia ser legitimamente considerada passível dela. 

Na maior parte da História foi comum a punição de morte para feiticeiras. O primeiro ''código'' [embora ele seja chamado assim de forma equivocada] conhecido, o de Hamurábi, já tratava assim os ''bruxos''. O justiçamento camponês para ''feiticeiros'' -- se entendidos como pessoas que abusavam de artes mágicas com o fito de prejudicar terceiros e a comunidade -- quase sempre foi impiedoso [4]. O próprio Platão, como exemplificado pela passagem d'As Leis, também pensava, seguindo um entendimento também comum em seu tempo, que crimes graves podiam ser cometidos contra a comunidade através de encantamentos [5].

Na Cristandade Ocidental -- a ''Europa cristã'' -- não era comum que as autoridades mandassem ''feiticeiras'' para a morte. Carlos Magno -- se não me engano -- chegou a proibir sentenças para os praticantes de mágica, por entender que os bons cristãos não estavam tão sujeitos assim a ela e por considerar a maior parte das acusações fruto de superstição popular. Diferente do que muitos pensam, foi com o alvorecer da Modernidade, isto é, entre os séculos XIII e XV, que se tornou generalizada a condenação destes atos, dando início à grande ''caça às bruxas'' da era moderna, particularmente feroz nos séculos XVI e XVII tanto em países católico-romanos quanto em protestantes [6].

A feitiçaria, punida com rigor durante a modernidade, só deixou de ser crime no mundo contemporâneo quando as autoridades europeias, e mais tarde a própria população ocidental, foi gradualmente deixando de acreditar seriamente na magia e no ''sobrenatural'' [7]. Estas seriam ''crenças subjetivas'' que não mereceriam maiores considerações do poder público. Óbvio que se a sociedade acredita ou sabe que a magia funciona, e se acredita ou sabe que há gente que a usa com fins malévolos, abre-se com coerência a questão de que punição seria adequada a atos desta ordem. Há aí a aplicação dum raciocínio preciso: se facas existem e podem ser usadas para cortar alguém, e se há gente que efetivamente assim as utiliza, então podem ser punidos pela lei. 

A argumentação contra a punição a feitiçaria, se feita com seriedade, deveria se concentrar antes na possível fragilidade dos métodos investigativos cujo fim seria a apuração da eficiência dos atos mágicos. Mas tudo isso é muito perigoso para a ideia do Estado laico, embora, por debaixo das aparências, ele acabe aceitando em alguns casos argumentação de cunho sobrenatural até em julgamentos de crimes contra a vida [8]. É mais confortável taxar de simples superstição a ideia de que atos mágicos podem funcionar, seja em que âmbito for, e falsear de modo pouco honesto os dados históricos sobre as sociedades -- maioria esmagadoras no passado -- que pensavam saber o contrário.


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[1] A verdade é que o ano do Terror da Revolução Francesa matou mais gente do que séculos de Inquisição católica-romana, e com um agravante. Enquanto esta última aplicava um processo minimamente legal e que dava ao acusado boas chances de absolvição e maiores ainda de sanções bem mais brandas que a fogueira, o tribunal jacobino não passava de um açougue voltado contra adversários de toda ordem, especialmente políticos. Porque o tribunal inquisitorial deveria ser, neste contexto, considerado um ''genocídio'' enquanto o mundo ocidental comemora os aniversários da Revolução Francesa é uma das consequências das crenças entranhadas na mentalidade do homem de nosso tempo.

[2] Desnecessário dizer que nenhuma das duas legislações é obrigatória para um cristão. O cristianismo não tem uma shari'a, um sistema civil e penal revelado e aplicado à generalidade dos homens ou a um povo especifico, como ocorre no caso do Islã ou dos hebreus. Ao longo do tempo, a Igreja adaptou a legislação existente entre diversos povos, principalmente o Direito Romano e a Lei Mosaica, aos princípios cristãos com o fito de organizar as sociedades, sem no entanto pretender que fossem esquemas absolutos caídos do céu.

[3] É possível a existência de um caminhão de debates sobre o tema da pena de morte, mas a alegação de que ela só vale para sociedades incivilizadas é, quando muito, uma afirmação retórica, mas desprovida de uma análise objetiva dos fatos e dos argumentos. Pode-se discordar da necessidade da pena de morte, de sua viabilidade etc., mas não da existência de bons argumentos a seu favor.

[4] A criminalização da feitiçaria não é uma invenção de algumas sociedades, mas antes a ordenação em marcos civilizados da prática generalizada de puni-la existente entre as populações dos quatro cantos do globo.

[5] Platão também se mostra favorável na obra à punição daqueles que negassem e ensinassem publicamente contra a existência da Inteligência Divina. Segundo Platão, um Dawkins atual teria de ser visitado pelo ''Concílio Noturno'', conselho de guardiões contra o perigo daqueles que não conseguiam compreender a realidade do Logos. Os tribunais inquisitoriais também só puniam aqueles que publicamente ensinassem a heresia -- deixando de lado os que apenas a abraçavam em âmbito privado ou afirmassem que assim faziam por não entender a doutrina oficial da Igreja. Ou seja, não era por 'credulidade' que a Igreja católica-romana punia o ensino da heresia, mas porque suas autoridades estudavam e concordavam com argumentos com certo background filosófico e platônico sobre o conhecimento, a ética e a política.

[6] Diferente também do que muitos pensam, o nascimento da Modernidade esteve associado com a disseminação tremenda de práticas ocultistas e mágicas, inclusive entre a elite intelectual e política.

[7] Não que o mundo do século XVIII tenha deixado de possuir suas crenças. Voltaire, que usou o tema da Inquisição e da ''caça às bruxas'' como meio de atacar a Igreja e o cristianismo acreditava piamente, por outro lado, na existência de vampiros. Para não falar das mitologias científicas de seu tempo.

[8] Exemplo recente e tipicamente brasileiro: Psicografias aceitas como provas em tribunal



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